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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O QUE NINGUÉM QUER ENXERGAR



Sua vida não é nada confortável. Em sua casa não tem televisão para assistir BBB, Pica-Pau e todas essas futilidades que abstraem do dia-a-dia massacrante e cruel. Também não tem estofado para se refestelar após um dia cansativo de trabalho. Geladeira, ah! (...) Nunca sentiu uma vez sequer o ar gélido desse eletrodoméstico tão essencial em tempos de verão escaldante. Emfim... Não tem carro, emprego, mulher bonita e cheirosa a lhe esperar... Quem é esse cara?

Morador de rua!
Mora em qualquer esquina. Sua vida não possui qualquer tipo de luxo. Suas roupas são dadas; imundas... Rasgadas e fedidas! Vaga de canto em canto.
Um homem bem vestido passa ao seu lado:

– Uma esmolinha pelo amor de Deus...
– Um prato de comida para um homem sem sorte...

Todos lhe vêem como lixo. Quem passa sobre ele nem se quer o enxerga, e como se fosse uma poluição, algo que fosse feio de olhar. Não tem estudo, mau sabe quem é Marx e sua tese sobre as relações sociais. Suas noites são sempre frias... sua cama é qualquer escada de igreja ou viaduto; seu lençol e qualquer papelão grande e velho que dê para se enfiar, seu travesseiro é uma pedra mais ou menos mole que dá pra encostar a cabeça. Não tem sonhos... Sua vida é um continuou pesadelo.

Por vezes há alguém que lhe olha com espírito de caridade. Vez ou outra tem sopāo com pão velho e um suco ralo que da ate pra adoçar um pouco a vida. Em certos momentos um pouco de conforto espiritual, já que nesses sopões ha sempre padres ou pastores que pregam a palavra de Deus.

Mas ele se pergunta algumas vezes: – quem é esse Ser de que tanto falam? Se fosse bom e justo não estaria nessa situação? Não consegue compreender como o Mundo funciona. Para ser alguém tem que vencer na vida. Ter casa, carro, dinheiro e consumir bastante. E há certo lance de sorte em nascer em alguma família que tenha pelo menos o mínimo. Como não sabe de onde veio (acha que é filho de chocadeira) e pra onde vai, fica difícil acreditar num Ser que não lhe foi generoso e o colocou para sofrer nas ruas de uma cidade grande e assustadora como São Paulo.

Já foi pra cadeia. Alias, foram os melhores tempos de sua vida! Foi onde encontrou um teto (abarrotado de pessoas, mas é melhor que as escadas da igreja), comida, roupas mais ou menos limpas; foi onde mais pareceu estar em um lar. Passou quatro anos por roubo e relutou muito pra sair, – vou assaltar mais uns 100 pra vê se volto logo! (...).

E era isso que estava fazendo até antes de levar um tiro à queima roupa no peito. Foi roubar uma loja de conveniências e o dono reagiu. Antes de deixar essa vida, reviu sua vida e agradeceu aquele Ser de que tanto ouvia falar, pois lhe fez um favor mandando o dono da loja lhe tirar a vida. Qualquer Mundo é melhor que esse! Qualquer situação é fichinha ante as condições em que sobrevivia, nas ruas de uma grande cidade brasileira, renegado a própria sorte, sem perspectiva alguma e sofrendo por não ter nada nem ninguém além das ruas.


Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela
Eu me chamo de cheiroso como alguém me chamou
Mas pode me chamar do que quiser seu dotô
Eu num tenho nome
Eu num tenho identidade
Eu num tenho nem certeza se eu sou gente de verdade
Eu num tenho nada
Mas gostaria de ter
Aproveita seu dotô e dá um trocado pra eu comer...
Eu gostaria de ter um pingo de orgulho
Mas isso é impossível pra quem come o entulho
Misturado com os ratos e com as baratas
E com o papel higiênico usado
Nas latas de lixo
Eu vivo como um bicho ou pior que isso

Eu sou o resto
O resto do mundo
Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou... Eu num sou ninguém

Eu tô com fome
Tenho que me alimentar
Eu posso num ter nome, mas o estômago tá lá
Por isso eu tenho que ser cara-de-pau
Ou eu peço dinheiro ou fico aqui passando mal
Tenho que me rebaixar a esse ponto porque a necessidade é maior do que a moral
Eu sou sujo eu sou feio eu sou anti-social
Eu num posso aparecer na foto do cartão postal
Porque pro rico e pro turista eu sou poluição
Sei que sou um brasileiro
Mas eu não sou cidadão
Eu não tenho dignidade ou um teto pra morar
E o meu banheiro é a rua
E sem papel pra me limpar
Honra? Não tenho, eu já nasci sem ela
E o meu sonho é morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela

A minha vida é um pesadelo e eu não consigo acordar
E eu não tenho perspectivas de sair do lugar
A minha sina é suportar viver abaixo do chão
E ser um resto solitário esquecido na multidão

Eu sou o resto
O resto do mundo
Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou o resto do mundo
Eu num sou ninguém
Eu num sou nada
Eu num sou ninguém

Frustração
É o resumo do meu ser
Eu sou filho da miséria e o meu castigo é viver
Eu vejo gente nascendo com a vida ganha e eu não tenho uma chance
Deus! Me diga por quê?
Eu sei que a maioria do Brasil é pobre
Mas eu num chego a ser pobre eu sou podre!


Um fracassado
Mas não fui eu que fracassei
Porque eu num pude tentar
Então que culpa eu terei
Quando eu me revoltar quebrar queimar matar
Não tenho nada a perder
Meu dia vai chegar
Será que vai chagar?
Mas por enquanto

Eu sou o resto
O resto do mundo
Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou o resto do mundo
Eu num sou ninguém
Eu num sou nada
Eu num sou gente
Eu sou o resto do mundo
u sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou o resto
Eu num sou ninguém

Eu num sou registrado
Eu num sou batizado
Eu num sou civilizado
Eu num sou filho do Senhor
Eu num sou computado
Eu num sou consultado
Eu num sou vacinado
Contribuinte eu num sou
Eu num sou comemorado
Eu num sou considerado
Eu num sou empregado
Eu num sou consumidor
Eu num sou amado
Eu num sou respeitado
Eu num sou perdoado
E também sou pecador
Eu num sou representado por ninguém
Eu num sou apresentado pra ninguém
Eu num sou convidado de ninguém
E eu num posso ser visitado por ninguém
Além da minha triste sobrevivência eu tento entender a razão da minha existência

Por quê que eu nasci?
Por quê tô aqui?
Um penetra no inferno sem lugar pra fugir
Vivo na solidão mas não tenho privacidade
E não conheço a sensação de ter um lar de verdade
Eu sei que eu não tenho ninguém pra dividir o barraco comigo
Mas eu queria morar numa favela amigo
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela.



Gabriel o Pensador, “O Resto do Mundo”.

3 devaneios:

Neto disse...

Show de bola! :)

Em referência ao texto posso dizer que ele está muito bem escrito. Muito bem sintonizado. Em relação à vida do mendingo posso citar que, infelizmente, nada acontece por acaso.

Porque ele é um (ou está) mendingo? Onde está sua mãe (ninguem nasce de chocadeira)? Sua família? Será que as agruras da vida 'comeram seu cerébro' o bastante para que ele não saiba mais nem quem é, ou que teve família?...

A família é um dom divino e merece ser valorizada. E digo-lhe isto mesmo sabendo que há membros dentro de nossas famílias (estou falando no geral) aos quais algumas vezes nós discordamos e não aceitamos suas opiniões e visão de mundo até de veemente, ou dura. Porem, são membros de nossa família e merecem todo o nosso respeito.

Para que uma pessoa tenha a vida assim como este mendingo aí algo de errado ele cometeu - fez, ou causou em seu passado. Deus é melhor juiz do que nós.

Recentemente, conversando com um amigo sobre um assunto diferente deste descrito aqui, eu lhe havia dito que: a pessoa que não reconhece seu erro segue por toda a vida 'errada' (ou errando). De certa forma, acho que tem algo a ver com a história desse pobre coitado citada aqui.

Entendo que o mundo lá fora é um mundo cão (temos que ser fera pra vencer). E entendo que, para esse tipo de gente, a criminalidade é uma porta aberta e atraente em cada esquina, mas se não existir a família pra ele, não existirá mais nada. Nem passo certo e nem ao menos um sonho de voltar a ser alguem.

Algumas vezes já lhe disse aqui que sou solidário com essa gente. E sou. Mas ajudo mais quem se ajuda do que apenas aqueles que gostam ou se viciam à viver das migalhas alheias.

O seu texto, Daniel, é tão bom e envolvente, que entrei nele rs... E a letra de Gabriel é mesmo interessante. Começo a acreditar realmente que para 'certas pessoas nesta vida' seus destinos parece que já estão (ou já foram) selados em sua própria genética.

Abração Daniel!

E parabéns de novo rapáh :)

Atila City disse...

Nossa Daniel pegou em um ponto interessante.
Nem sei ao certo se me expressarei bem pois o tema tem haver também com minha vida...
Sobre o comentário do Neto, parabéns meu caro é um cara maduro, familia é um pilar muito bom de ser valorizado! Quando não são os que ja viemos, são os que nós formamos.
Mas vamos ao tema...rs
No texto cita Marx e o interessante que foi o primeiro livro que lí na vida... o capital.
Bom, pelos 16 anos eu tinha uma mãe com Sindrome de Depressão, onde não saia da cama, tinha crises direto e meu pai vivia a vida dele (separados) e eu um jovém com vontade de mudar o mundo, cansado de ver as injustiças e dando varias cabeçadas que é normal a idade.
Enfim, meus pensamentos fora dos padrões da sociedade e a doença de minha tutora (mãe) resultou em um periodo onde a única coisa que eu tinha na vida (naquele momento) era a roupa do corpo e liberdade.
Não sei se por ter vontade de sentir a vida consegui sobreviver nesta realidade, sei o que é sentir fome, sei o que é sentir frio. Mas aprendi com esta vida a dar valor a coisas pequenas, que detalhes da vida e do cotidiano são únicas, quem não tem nada a perder não se preocupa com a vida, sobrevive.
Mas quem vive sem futuro, não evolue e como o Neto disse todos tem origens, todos evoluirão até um determinado ponto, até que perderam o controle, as vezes o morar na rua pode ser uma angústia causada pelo vicio, pelo medo e por nescessidade.
Mas na vida aprendemos todos desde cedo (salvaguardando os que de nascimento foram impedidos de movimento) que do cair, conseguimos andar.
Mas para cuidar deste problema, governantes mais compromissados com o cidadão e uma cultura social mais pró ativa ajudaria e muito.
Um grande abraço e meus parabéns pelo tema, me quebrou outro paradigma..hehe.. segunda feira tem humor paulistano no Só Pensando

A Itinerante - Neiva disse...

Daniel,

Acho que já comentei com você que por algum tempo fiz parte de um trabalho assistencial que levava sopa, roupas, cobertores, barbeiro e ajuda a estes mendigos, não é?

Aqui em sp tem muita ajuda, mas a maior parte não quer, porque teria que parar de beber ou drogar-se e ainda teria que trabalhar. Eles preferem ficar nas ruas do que ir para um abrigo. Esta é verdade em muitos casos.

Existem aqueles coitados que realmente merecem ajuda? Existe sim. Vi famílias inteiras, com criancinhas de peito, expostas ao frio, à fome, à violência, crianças de 7/8 anos tiritando de frio, absolutamente sós e muito mais.

O que posso dizer é que quem está aberto para a ajuda é ajudado, mas muitos querem uma ajuda integral, com tudo pronto e de mãos beijadas em suas mãos e a ajuda que vem necessita de trabalho e por isto é descartada.

Na maior parte das vezes eles acabam nesta situação por uma combinação de falta de oportunidades (sim!) com falta de tenacidade. Deixam-se derrotar pela vida, desistem.

Nós que aqui estamos sofremos golpes todos os dias e não nos deixamos abater. Por isto estamos aqui.

É complicado. Não são simples coitadinhos.

(Ps.: não ia desistir dos textos polêmicos e este ser um blog de contos? rsrs)

Beijos

BOO-BOX!!!

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